Em meio ao avanço acelerado da agropecuária sobre o Cerrado, uma nova descoberta lança luz sobre um potencial pouco explorado da vegetação nativa em Goiás. Dados inéditos do Atlas dos Remanescentes de Vegetação Nativa do Estado de Goiás revelaram que o território goiano possui 42% mais cobertura vegetal nativa do que se estimava anteriormente.
A constatação, fruto do uso de tecnologias de alta precisão e inteligência artificial, promete impactar políticas públicas, projetos de restauração ecológica, mercado de carbono e até o licenciamento ambiental no estado. A descoberta foi possível graças ao uso combinado de imagens de satélite com altíssima resolução, ferramentas digitais de sensoriamento remoto e aprendizado de máquina.
O projeto é uma iniciativa do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás (UFG), em parceria com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa (Funape).
O levantamento visa quantificar a cobertura vegetal e qualificá-la em termos de fitofisionomia. A Semad declarou que o projeto é de autoria da pasta e que teria contratado a UFG para a execução técnica do projeto, que também tem como função coordenar o grupo de trabalho, que é composto por servidores públicos que acompanham os trabalhos de campo, avaliam os relatórios metodológicos e validam os produtos entregues.
A primeira etapa do Atlas focou justamente nessas duas bacias, regiões sob intensa pressão agrícola. O resultado foi surpreendente: mais de 12.563 km² de vegetação nativa identificada — uma área expressivamente maior do que a apontada por bases anteriores, como o MapBiomas.
“Não significa que o Cerrado está recuperando áreas. A diferença é que agora conseguimos ver o que antes era invisível com os métodos tradicionais”, explica Nilson Clementino Ferreira, coordenador técnico do projeto. “São fragmentos pequenos, mas ecologicamente valiosos.”
O processo começou com a divisão das bacias em tiles de 5×5 km, posteriormente subdivididos em quadrículas de 10×10 metros — uma escala inédita para o Cerrado. As análises se basearam em imagens fornecidas pelo satélite CBERS-4A, com resolução de até 2 metros. Ferramentas como Google Earth Engine, QGIS e scripts em Python ajudaram a processar os dados.
A equipe treinou algoritmos de inteligência artificial com base em “amostras puras” de vegetação — trechos previamente identificados como floresta seca, savana úmida, campo campestre, entre outros. As imagens foram então interpretadas pixel a pixel com o suporte de especialistas.
“O Cerrado é um mosaico de vegetações. Uma savana degradada pode se parecer com uma pastagem ou com uma floresta jovem. Por isso, combinamos análise automática com verificação humana e auditorias rigorosas”, afirma Nilson. As auditorias finais incluíram revisões feitas por uma segunda equipe, com redefinição de limites e correção de erros. “A dupla checagem reforça a confiabilidade dos dados. A precisão foi nossa prioridade”, acrescenta.
A nova cartografia ambiental não anula a perda histórica de vegetação no Cerrado, que, entre 1985 e 2022, perdeu em média 1,1 milhão de hectares por ano, segundo o MapBiomas. Mas mostra que fragmentos de vegetação, mesmo cercados por soja, milho ou pastagem, seguem resistindo e desempenhando funções ecológicas fundamentais, como proteção de nascentes, estoques de carbono e rotas de dispersão para fauna e flora.
Etapas e abrangência
De acordo com a Semad, o Atlas será produzido e entregue em seis etapas, sendo que cada uma consiste na apresentação de um mapa detalhado de determinada região do Estado, com intervalo de três meses entre cada nova entrega. O primeiro mapa abrange as bacias do Meia Ponte e do Rio dos Bois.
Em seguida, o levantamento seguirá para as bacias do Médio Tocantins e do Paranã; Alto Araguaia e Vermelho; Paranaíba; Médio Araguaia; e, por fim, as bacias dos rios Almas, São Francisco e Corumbá. A ordem, no entanto, pode ser ajustada conforme demandas técnicas e operacionais.
O levantamento se baseia na classificação fitofisionômica do Cerrado, que considera três formações principais — campestre, savânica e florestal — cada uma com variações úmidas e secas. Ao fim das seis etapas, o Atlas revelará a distribuição exata dessas fitofisionomias no território goiano.
Base para políticas públicas mais eficientes
Para os gestores ambientais, o mapeamento inaugura uma nova etapa na formulação de políticas públicas. “Ter dados tão detalhados ajuda a planejar ações de forma mais cirúrgica, reduzindo erros e desperdícios”, diz Marina Oliveira, especialista em gestão ambiental e colaboradora do projeto. “Podemos saber com clareza onde proteger, onde recuperar e que tipo de vegetação estamos lidando.”
A coordenadora geral do projeto, Elaine Barbosa, destaca o ganho estratégico: “É um avanço técnico, mas também político. Os mapas do Atlas podem reorientar ações de fiscalização, atualização do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), controle do desmatamento ilegal e até a gestão dos recursos hídricos.”
A Semad reforça que o Atlas também fornecerá informações mais precisas sobre a contribuição de Goiás no sequestro de gases causadores de efeito estufa — embora existam outras formas de sequestro além da vegetação. “Cada tipo de formação vegetativa identificada no Atlas contribui de uma forma própria nesse processo. Com dados mais precisos, o Governo de Goiás terá condições de avançar em políticas públicas nessa seara”, aponta a secretaria.
Elaine também enfatiza o papel da equipe multidisciplinar envolvida. “Conseguimos aliar ciência, tecnologia e políticas públicas com uma visão coletiva. Isso dá solidez ao projeto.”
Carlos Ribeiro, analista ambiental e consultor no setor de carbono, afirma que os resultados devem influenciar diretamente o mercado. “A vegetação nativa é um ativo. Se temos mais do que pensávamos, há mais potencial para geração de créditos de carbono, para compensação ambiental e até para atrair investimentos sustentáveis”, aponta.
Pedro Almeida, analista em geotecnologias da Universidade de Brasília (UnB), reforça que os dados têm impacto imediato. “Se uma área antes era considerada alterada e agora é reconhecida como nativa, isso muda o jogo jurídico, ambiental e até financeiro.”
Com o sucesso da primeira etapa, a proposta agora é ampliar o mapeamento para todo o estado de Goiás. A expectativa é que a metodologia adotada possa ser replicada em outras regiões, inclusive em outros biomas brasileiros. “Queremos fazer uma varredura completa do Cerrado goiano.
Por fim, mas não menos importante, o Atlas servirá de instrumento para implementação das próximas fases do recém-criado programa de Pagamento por Serviço Ambiental (PSA), cuja principal meta é preservar remanescentes de vegetação nativa. Com essas informações, a Semad poderá decidir com mais segurança e precisão quais municípios devem entrar prioritariamente no programa.
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