Pesquisadores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) vêm sendo ameaçados por grileiros nos últimos dias em Santo Antônio do Descoberto (GO), no Entorno do Distrito Federal. Eles realizam estudos na região conhecida como Antinha de Baixo, uma área de aproximadamente 1,5 mil hectares que os descendentes de escravizados chamam de Antinha dos Pretos. O trabalho busca comprovar se o local pode ser reconhecido oficialmente como território quilombola, processo que envolve a análise de documentos, relatos orais, inscrições, reminiscências culturais e até símbolos religiosos, como cruzes de cemitério.
O primeiro passo foi dado no início de agosto, quando a Fundação Cultural Palmares publicou portaria que certifica a comunidade como remanescente quilombola. No entanto, dois dias antes, uma decisão da juíza Ailime Virgínia Martins, da 1ª Vara Cível de Santo Antônio do Descoberto, havia determinado a desocupação de 32 imóveis da comunidade.
Recentemente, O HOJE noticiou que mais de 1,6 mil pessoas foram obrigadas a deixar seus lares em Antinha de Baixo. Cerca de 400 famílias receberam notificações para desocupar as terras, que seriam herdadas pelo desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), Breno Boss Caiado, primo do governador Ronaldo Caiado (UB). A ação de retirada, cumprida pela Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Conselho Tutelar, se estendeu até o dia 5 de agosto. Moradores relataram que 32 casas foram demolidas. Ainda na noite do mesmo dia, no entanto, a Justiça Federal suspendeu o despejo após pedido do Incra, que defende a federalização do processo por se tratar de território quilombola.
Disputa histórica
O processo que originou a disputa pela posse da área remonta a 1945, quando o morador Francisco Apolinário Viana pediu a separação das terras. Quatro décadas depois, em 1985, Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss — esta última esposa de Emival Ramos Caiado, tio do atual governador — ingressaram na Justiça alegando direitos hereditários sobre a mesma área. Em 1990, o trio obteve decisão favorável, mas os conflitos judiciais continuaram.
Os pedidos de desocupação se intensificaram a partir de 2014. Posteriormente, Breno Boss Caiado, primo do governador, atuou como advogado no processo. Em 2023, antes de se afastar do caso, apresentou recurso alegando irregularidades em ações de usucapião e divisão de terras movidas pelos moradores.
Acusações de fraude
Segundo o presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Antinha de Baixo (Asprocab), o advogado Francisco Porfírio da Silva, há indícios de manipulação de documentos no processo. “O objetivo dessa ação é grilar as terras. O Breno Caiado nunca apresentou escritura de algumas áreas, e até hoje não apresentou à juíza, que mesmo assim expediu o mandado de reintegração de posse”, afirmou Porfírio.
Ele relata que a violência fundiária é antiga. “Em 2022 fundamos a Asprocab para enfrentar essas práticas. Mesmo com decreto da Fundação Palmares, derrubaram a casa mais antiga da comunidade”, disse. Porfírio também criticou a postura do Ministério Público de Goiás (MP-GO), que, segundo ele, não atuou em defesa dos moradores.
Federalização do processo
Com a certificação quilombola da Fundação Palmares publicada em 1º de agosto, o Incra iniciou formalmente a regularização fundiária. A Procuradoria Federal do órgão acionou a Advocacia-Geral da União (AGU) para atuar como assistente no processo, pedir a suspensão do despejo e transferir a disputa para a Justiça Federal. O pedido foi aceito no dia 5, tornando sem efeito a reintegração em curso. O Incra argumenta que, por se tratar de território quilombola em processo de titulação, a competência é exclusiva da esfera federal.
A decisão também trouxe repercussões políticas. O deputado estadual Mauro Rubem (PT) acusou a família Caiado de envolvimento em grilagem e de promover despejos forçados com base em documentos suspeitos.
Declarações oficiais
O TJ-GO sustenta que não há demarcação oficial de território quilombola em Antinha de Baixo e que a certificação da Fundação Palmares é apenas uma autodeclaração dos moradores. O MP-GO, por sua vez, afirma que o processo trata da execução de sentença de divisão de terras ajuizada em 1993 e que não cabe reavaliar o mérito.
Já para a comunidade, a batalha está longe do fim. Entre despejos, ameaças a pesquisadores e denúncias de irregularidades, os moradores seguem reivindicando o direito de permanecer na terra ocupada por seus ancestrais há mais de 80 anos.
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