Nos últimos anos, o Brasil vive uma escalada de casos de intoxicação que desafia tanto o sistema de saúde quanto os órgãos de investigação. Entre tentativas de suicídio, acidentes domésticos e crimes premeditados, a facilidade de acesso a substâncias letais expõe uma fragilidade preocupante no País.
Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), os casos de intoxicação exógena notificados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) cresceram quase 62% entre 2020 e 2024, passando de 145,5 mil para 235,6 mil. Só nos cinco primeiros meses de 2025, já foram registradas mais de 51 mil ocorrências, a maioria envolvendo medicamentos e drogas de abuso. Especialistas acreditam que o número real seja ainda maior, chegando a 3 milhões por ano, já que muitas intoxicações não são diagnosticadas corretamente.
Na véspera do Natal de 2024, uma festa em família terminou em tragédia na cidade de Torres, no Rio Grande do Sul. O tradicional bolo de Reis, preparado por uma aposentada de 61 anos, foi servido a seis parentes. Três morreram após ingerir o alimento, que continha concentração de arsênio 2,7 mil vezes acima do permitido. A investigação apontou que o crime havia sido planejado meses antes e ganhou repercussão nacional, expondo a facilidade de comprar venenos pela internet.
Poucos meses depois, em Itapecerica da Serra (SP), uma jovem de 17 anos morreu ao comer um bolo de pote envenenado. O arsênio usado no crime foi adquirido em um site por apenas R$ 80. O doce, comprado por aplicativo de entrega, custou R$ 5. O caso mostrou como a banalização do acesso a substâncias tóxicas amplia o risco de tragédias.
O crime premeditado que abalou Goiás
Em Goiás, o caso da advogada Amanda Partata, de 31 anos, ganhou repercussão nacional pela frieza e pelo planejamento. Na manhã de 17 de dezembro de 2023, a jovem apareceu na casa do ex-namorado em Goiânia levando itens para o café da manhã, entre eles bolos de pote adquiridos em uma doceria da cidade. Poucas horas depois, dois familiares dele, Leonardo Pereira Alves, de 58 anos, e a avó Luzia Tereza Alves, de 86 — morreram após ingerir os doces.
Inicialmente, suspeitou-se de intoxicação alimentar, mas a investigação revelou envenenamento. Amanda havia pesquisado sobre venenos na internet, comprado a substância em seu nome e recebido a encomenda em Itumbiara, onde morava. A nota fiscal e o rastreamento da entrega se tornaram provas centrais.
As apurações apontaram que Partata agiu por sentimento de rejeição após o fim de um relacionamento de apenas 45 dias. Na tentativa de manter laços com o ex e sua família, chegou a inventar uma gravidez. Câmeras de segurança registraram o momento em que ela chega à residência com as embalagens do café da manhã. O avô e o tio do ex também receberam os bolos, mas escaparam da morte porque decidiram não comer.
Intoxicações vão além dos medicamentos
A elevação dos registros de intoxicação nos últimos anos não está ligada apenas ao uso inadequado de medicamentos. A avaliação é de Nathania Santiago, docente do curso de Farmácia, que aponta um cenário multifatorial envolvendo também produtos químicos de uso doméstico e agrotóxicos.
Segundo a especialista, os medicamentos continuam sendo uma das principais causas, sobretudo em crianças e idosos, devido à automedicação, erros de administração e uso inadequado. “Mas não são os únicos. Produtos de limpeza, saneantes, agrotóxicos e substâncias químicas industriais também têm grande impacto nesse aumento”, explica.
Dados de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) e do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) mostram que as substâncias mais relacionadas aos casos de intoxicação no Brasil incluem analgésicos, anti-inflamatórios, psicotrópicos (como benzodiazepínicos e antidepressivos) e antipiréticos; produtos de limpeza como água sanitária, desinfetantes, detergentes cáusticos e limpadores multiuso; agrotóxicos como inseticidas organofosforados, carbamatos e herbicidas, entre eles o glifosato; além de drogas de abuso como álcool, cocaína, crack e maconha sintética.
Nathania alerta ainda que os sintomas iniciais podem confundir profissionais de saúde e pacientes, já que se manifestam de forma inespecífica, com náuseas, vômitos, dor abdominal, tontura e mal-estar, semelhantes aos quadros de intoxicação alimentar ou viroses.
Por isso, a anamnese detalhada, considerando uso de medicamentos, exposição a substâncias químicas, alimentos suspeitos e histórico ocupacional, é fundamental para um diagnóstico correto. A docente reforça ainda o papel do farmacêutico na linha de frente, destacando que o profissional contribui para a identificação precoce dos agentes causadores e no encaminhamento adequado, ajudando a evitar complicações.
Casos de envenenamento por medicamentos crescem 70% em Goiás
O número de casos de envenenamento em Goiás tem aumentado de forma preocupante, principalmente por intoxicação causada pelo uso inadequado de medicamentos. De acordo com dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES-GO), entre 2020 e 2024 foram registrados 18.568 casos relacionados a remédios — um aumento de 70% no período.
Somente em 2024, foram 4.474 notificações, contra 2.625 em 2020. No mesmo período, 2.604 pessoas morreram em decorrência de dependência química ou intoxicações acidentais e intencionais.
Além dos medicamentos, os dados apontam que as intoxicações por animais peçonhentos lideram o ranking no Estado, com 50.693 ocorrências no mesmo intervalo. Já os casos ligados ao uso de drogas de abuso, como crack, cocaína e maconha, somaram 3.142 registros.
A vulnerabilidade das crianças também preocupa especialistas. Entre 2023 e 2024, o Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad) registrou 979 casos de intoxicação infantil por medicamentos. Segundo a SES-GO, a dificuldade de calcular a dose correta e a automedicação são fatores determinantes nesses episódios.
A farmacêutica toxicologista Letícia Rodrigues, do Hospital Universitário de Brasília, alerta que o risco de intoxicações é maior do que parece no cotidiano. “Há uma ilusão de segurança, mas todos estamos sujeitos a substâncias tóxicas em nosso dia a dia”, ressalta.
Já a professora Eloísa Dutra Caldas, da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Laboratório de Toxicologia, chama atenção para a dificuldade de mapear o problema no País. Segundo ela, muitos casos acabam passando despercebidos. “O Brasil ainda carece de estrutura para identificar intoxicações. Isso faz com que haja uma enorme subnotificação, o que aumenta os riscos para a saúde coletiva”, explica.
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