Se o ortopedista Ronaldo Caiado for bom de diagnóstico na área de saúde como acaba de mostrar que é na área jurídica, pode ganhar o Prêmio Nobel de Medicina. Depois de ser derrubada uma das melhores novidades legislativas do País nos últimos anos, o governador de Goiás divulgou o seguinte texto, que merece ganhar o Concurso Bula de Poesia:
“Sobre a liminar concedida pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes, em ação proposta pelo Diretório Nacional do PT contra andamento de obras da nossa gestão, quero afirmar que cumprirei a decisão. Mas gostaria também de dizer que, durante a posse do ministro Edson Fachin na presidência do STF, no dia 29 de setembro, me encheu de esperança uma frase do novo presidente em seu discurso: ‘Ao direito o que é do direito. À política o que é da política’. O voto do ministro Alexandre de Moraes foi político”. Irretocável.
Outra análise perfeita foi dita a O HOJE por Pedro Sales, presidente da Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra): “Perdemos a continuidade de algumas obras, porém o pior foi o exemplo”. Corretíssimo.
O exemplo: não tente consertar algo errado que esteja dando lucro para alguém, caso contrário são 17 anos na Papuda por escrever lei com batom.
A raiz do pepino é uma ação direta de inconstitucionalidade, a ADI 7.885, feita pelo PT. O Governo do Estado vai cumprir, mas discutindo. Como diz o procurador-Geral do Estado, Rafael Arruda, a decisão “não encerra o debate constitucional acerca do Programa de Parcerias do Fundeinfra”. O método é de duvidosa eficácia: “A PGE-GO, em trabalho de convencimento e diálogo institucional junto ao Supremo Tribunal Federal, demonstrará a juridicidade das leis estaduais que disciplinam a matéria, com o objetivo de reverter o entendimento liminar”.
Já foi o tempo em que o STF travava “diálogo institucional”. Constitucionalíssimo agora é ser disso aí que alguns chamam de esquerda, o restante está fazendo hora extra fora da cadeia. Por isso, o que o PT propôs foi uma Ação Direita (isso mesmo, direita) de Inconstitucionalidade. O ministro argumenta em sua questionável decisão que “esta Corte [o STF] já assentou o entendimento de que assiste aos Estados competência suplementar para legislar sobre licitação e contratação, desde que respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União”. Porém, escreve Moraes: “Lei estadual [a de Goiás] ampliou hipótese de dispensa de licitação em dissonância do que estabelece a Lei 8.666/1993”.
Moraes e uma lei revogada
A 8.666, citada pelo ministro, é um lixo autoritário enterrado e revogado. Foi substituída pela Lei 14.133/2021, que começou a valer no ano passado, mas não contem para Moraes. Em 2023, a iniciativa goiana havia enfrentado o STF na ADI 7.363, imposta em análise pela Confederação Nacional da Indústria. Como o relator foi outro, o ministro Dias Toffoli, a sessão virtual de 24 de abril daquele ano negou a liminar e as duas leis estaduais de 2022, a 21.670 e a 21.672, continuaram valendo até agora.
No frigir dos ovos, o que se percebe não é a violação ao inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal. Esse dispositivo está na seção dos orçamentos e o 167 diz que são vedados alguns atos. Com o novo texto da Emenda Constitucional 42, de 2003, o inciso IV passou a ser assim:
IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.
A PGE-GO acha que “trata-se de tema de elevada complexidade técnica e jurídica”. Na realidade, é simples, pois no Mato Grosso do Sul existe, como informa a própria procuradoria:
“Esse modelo de contribuição facultativa já teve a sua constitucionalidade assinalada pelo Supremo Tribunal Federal – guardião da Constituição Federal – em algumas oportunidades, sobretudo quando a ADI nº 2056/MS, reconheceu a constitucionalidade de contribuição destinada ao FUNDERSUL, do Estado de Mato Grosso do Sul – instituto com contornos semelhantes à contribuição ao Fundeinfra”.
O problema é Caiado enfrentar Lula
Ninguém vê inconstitucionalidade nisso porque o governador Eduardo Riedel não vai concorrer com Luiz Inácio Lula da Silva pela Presidência da República. Conforme a PGE defendeu em 2023:
1) “A decisão da ADI 7.363 reafirmou um posicionamento histórico do STF e reconheceu a prerrogativa dos Estados em buscar a contribuição em prol do investimento público”;
2) “A contribuição facultativa ao Fundeinfra é mera condicionante à fruição de determinados incentivos fiscais e de regimes especiais de fiscalização tributária”;
3) “O termo ‘contribuição’ é utilizado como substantivo oriundo do verbo contribuir (para algo) – e não como denominação técnica de uma espécie tributária”.
É o produtor rural colaborando com as obras que ele mesmo vai usar e ele mesmo vai escolher quer pagar para construir – se viola alguma norma, é para atingir o próprio bolso e a qualidade das rodovias por onde vai transportar o que planta. Como disse o governador Ronaldo Caiado (este, sim, pré-candidato a enfrentar Lula mais uma vez nas urnas), basta ao STF agir como quer seu novo presidente: só no Direito, não na política.
Onde mora o perigo da decisão contra Goiás
Estava escrito nas estrelinhas vermelhas que as decisões, sobretudo as monocráticas, da Suprema Corte iriam descer e atingir outros públicos além de deputados boquirrotos e gente que desfila em Brasília com a amarelinha da Seleção. Começou com políticos da oposição a Lula, agora chegou aos produtores rurais goianos e vai parar sabe-se lá quando ou onde, talvez nas Fossas Marianas, os lugares mais profundos do planeta. Em reportagem publicada neste domingo em ohoje.com, o presidente da Federação de Agricultura de Goiás, José Mário Schreiner, diz que foram atingidas quatro rodovias fundamentais, as que cuidariam dos maiores gargalos de escoamento das safras.
No Sul/Sudoeste do Estado, serão paralisadas as GOs 178, 180 e 461, que partem ou atravessam municípios como Rio Verde, Jataí, Itumbiara, Doverlândia, Porteirão. Na região da Estrada de Ferro, acaba com o sonho de pavimentação na GO-147, que liga Bela Vista a Silvânia. Os bilhões que bancam salários e outros gastos dos Três Poderes saem de entroncamentos como o da GO-210, na saída de Rio Verde para Montividiu. Há filas de carretas lotadas de grãos.