Os integrantes da Suprema Corte dos Estados Unidos são anônimos. Podem ir a estádios e passar incólumes, sem vaias, aplausos ou dedo do meio em riste. Não há caso de algum ter falado a diário de Brasília às vésperas de julgamento de autoridade em desafio ao presidente brasileiro. Essa diferença em relação aos trópicos se alargou ainda mais nesta segunda-feira, 18/8, quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, foi personagem do jornal The Washington Post, um dos principais do mundo, que na transição forçada pela tecnologia aumentou o número de assinantes – eram 700 mil no total, agora, está com 200 mil impressos e 2 milhões e 500 mil digitais.
Em seus perfis nas redes, os veículos oficiais do governo brasileiro publicaram posts com cards e destaques das falas do ministro. Moraes aproveitou a gigantesca tribuna e soltou o verbo. A repercussão foi imediata, com os aliados do PT comemorando o espaço cedido ao ministro e suas frases de efeito em defesa das decisões que vem tomando. Os oposicionistas criticaram, o deputado federal Eduardo Bolsonaro soltou mais uma saraivada de impropérios e a chamada grande imprensa pinçou detalhes.
Aos borbotões, o Brasil vai consolidando a visão de um país em interminável conflito. O antigo país cordial, na notória definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sai das manchetes de Carnaval e violência para as páginas de política. Em vez de decisivo nos grandes temas globais, como França, Alemanha e Estados Unidos, o PIB e a relevância estratégica na geopolítica planetária nos colocam ao lado de Venezuela, Cuba, Nicarágua – não porque se alinham em termos de ideologia a PT e aliados, mas pelo terceiro-mundismo.
Enquanto isso, o vento virou e os afinados com o governo brasileiro estão deixando o poder. A onda de liberalismo já alcançou dos Estados Unidos à Argentina, parece próxima da Colômbia, está reconhecida na Venezuela em oposição a Nicolás Maduro e acaba de colocar dois nomes no 2º turno das eleições bolivianas. O cenário poderia nada dizer a respeito do Brasil, mas viramos o país do embate. É o resumo não somente do Post, também dos demais grandes veículos da imprensa internacional.
A seguir, os principais trechos da entrevista e a análise de cada um.
Sem recuo
“Não há a menor possibilidade de recuar nem um milímetro.”
O ministro falar por si e, de acordo com votações, não por todos. Não tem como saber se o STF vai recuar, pois os votos de seus colegas serão conhecidos apenas após os debates sobre o 8/1, que vão começar no início do próximo mês.
Devido processo legal com i
“Faremos o que é certo: receberemos a acusação, analisaremos as provas e quem deve ser condenado será condenado, e quem deve ser absolvido será absolvido.”
Com isso, tranquilizou milhares de acusados, seus familiares e amigos. Será uma novidade, porque há inquérito no Supremo em que o relator exerce múltiplos papéis, de Ministério Público, Polícia Judiciária, vítima e julgador.
O tempo no fim do mundo
“Enquanto houver necessidade, a investigação continuará.”
Em relação ao inquérito chamado de “fim do mundo”, as apurações já duram anos mais de seis anos. As investigações de Watergate, que levaram à renúncia do presidente Richard Nixon, elucidaram em dois. A Comissão Warren precisou de apenas 10 meses para resolver o assassinato de John Kennedy.
A desagradável Magnitsky
“É agradável passar por isso? [as sanções, como as da Lei Magnitsky] Claro que não é agradável.”
A lei não foi feita para isso. Seu foco eram os monstros dos direitos humanos. Não é o caso do ministro, em cujo currículo não constam assassinatos nem torturas, apesar de bolsonaristas colocarem em sua ficha a morte do baiano Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, um dos acusados pelas manifestações de 8 de janeiro de 2023. Clezão sofreu um mal súbito enquanto tomava banho de sol na Papuda, a penitenciária de Brasília. Moraes, enquanto durarem as restrições, fica sem o visto para entrar nos Estados Unidos e impedido de movimentar eventuais recursos que tenha por lá.
Fakes em mídias sociais e tradicionais
“Essas narrativas falsas acabaram envenenando o relacionamento — narrativas falsas sustentadas pela desinformação disseminada por essas pessoas nas redes sociais.”
Moraes se refere às relações do Brasil com os Estados Unidos. Tem razão quanto à miríade de fake news. No caso, é chumbo trocado, pois governo e oposição não fornecem a menor chance à verdade – se há uma certeza é que se deve duvidar de tudo o que se lê, vê e ouve. Não apenas nas redes sociais, como citou o ministro. Jornais (inclusive The Washington Post), rádios, agências e emissoras de TV são, em sua esmagadora maioria, fornecedores de conteúdo progressistas, alinhado à situação no Brasil e oposição nos Estados Unidos.
A tradição totalitária se mantém
“O Brasil teve anos de ditadura sob Getúlio Vargas, outros 20 anos de ditadura militar e inúmeras tentativas de golpe. Quando você é mais atacado por uma doença, forma anticorpos mais fortes e busca uma vacina preventiva.”
A dificuldade é, mesmo com a tradição em arbítrios, convencer autoridades a evitá-los. Quanto mais dedicado o poder está a se tornar único, menos reconhece sua autocracia. No Brasil, em momentos de democracia, já foram derrubados dois presidentes da República, diversos integrantes do Legislativo e nenhum do Judiciário. Nos últimos anos, é a corte em que Moraes atua a mais acusada por direita e esquerda, dependendo do tempo, de evitar as vacinas que imunizam os regimes democráticos.
Os mocinhos às claras
“O que precisamos fazer, e o que o Brasil está fazendo, é esclarecer as coisas.”
O que o Brasil precisa esclarecer, principalmente para o público interno, é o motivo de comprar encrenca internacional apenas porque meia dúzia de personagens resolveram bancar os mocinhos. Quem mais sofre são as pessoas de bem, que não arrumaram encrenca com ninguém e passam as noites com insônia pela incerteza de saberem se sua empresa vai quebrar agora ou em setembro, se serão demitidos enquanto o patrão ainda tem recursos para quitar os direitos trabalhistas.
O invicto e as vitórias
“Sabe quantas [decisões suas analisadas por outros ministros] eu perdi? Nenhuma sequer.”
Sabe quantas [brigas com países consumidores de nossos bens há 200 anos] o Brasil ganhou? Nenhuma sequer.
Lei Magna
“Todo constitucionalista tem uma grande admiração pelos Estados Unidos.”
Duas coisas que estão faltando no Brasil, constitucionalista e grande admiração pelos Estados Unidos.
O post O milímetro do ministro e a mentira para mais de metro apareceu primeiro em O Hoje.