A Romaria do Divino Pai Eterno em Trindade reuniu, ao longo de seus 185 anos, experiências que ultrapassam gerações. Anualmente, a festividade atrai uma média de 4 milhões de pessoas com o único objetivo de celebrar sua fé. São, também, 4 milhões de histórias. Entre elas, muitas que passam anos apenas no coração de quem as vive seriam capazes de emocionar multidões. Esse é o caso do grupo Terno de Congo Canarinho Verde Amarelo.
Uma história em meio a multidão
A missa de encerramento oficial da Romaria do Divino Pai Eterno 2025 iniciou às 8h, no altar campal na Praça do Santuário Brasília, em Trindade. Nos meados da missa surge, silenciosamente, um grupo formado por cerca de 30 pessoas. O uniforme verde e amarelo chama atenção em meio a multidão de fiéis que assistia o ato litúrgico.
No grupo, duas mulheres escoltavam duas jovens: uma, porta-bandeira; outra, levava um pequeno altar em formato de capela. Alguns dos homens carregavam tambores e baquetas, e outros dois carregavam uma sanfona e uma espécie de chocalho cada um. Apenas um estava vestido todo de branco, e este era um dos capitães do grupo, Leandro de Souza Gonçalves.
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Raízes da tradição
Leandro de Souza, neto do fundador, explica que o Terno de Congo Canarinho Verde Amarelo é uma tradição familiar que data de 1971. Apesar dos 54 anos de história, o grupo aparenta ser recente se comparado às raízes que o mantém até hoje.
Com os instrumentos que permaneceram respeitosamente em silêncio até o fim da missa, o grupo toca Congada. As músicas, relacionadas ao Santo Padroeiro, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, têm uma forma específica de serem cantadas. O capitão puxa o compasso do grupo, enquanto os soldados (os outros integrantes), repetem as letras e tocam os instrumentos em ritmo sincronizado.
“A congada é uma manifestação que remete à época da escravidão, um estilo afro-brasileiro. Antigamente, os escravos não podiam louvar os santos padroeiros pois seriam punidos por seus senhores. Por isso, quando os senhores iam descansar ao anoitecer, os escravos iam para a senzala, fabricavam seus próprios tambores, e depois louvavam seus santos”, explica Leandro, com a pele negra brilhando sob o sol durante a missa.
Assim como antigamente, os tambores do Terno de Congo Canarinho são artesanais. Os instrumentos carregam consigo a música, a fé e a tradição em três principais celebrações ao longo do ano. A bandeira com os dizeres “Louvemos à 13 de maio” acompanha o grupo.
A data remete ao dia de abolição da escravatura no Brasil (13 de maio de 1888). No quinto mês do ano, o grupo celebra a Festa do Congo da Vila Santa Helena, no setor Campinas em Goiânia. Nos meses de junho e julho, há a festa da Romaria de Trindade. Por fim, em setembro, há a Festa do Congo na Vila João Vaz, da Avenida Perimetral Norte, também em Goiânia.
Bandeira do grupo Terno de Congo (Foto: Eduarda Leite)
O voto de 50 anos
Ao fim da missa, outro homem de branco se junta ao grupo, o pai de Leandro, Romilton de Souza Gonçalves, de 67 anos. À voz dos dois homens, os tambores artesanais levantaram do chão e ganharam vida.
Terno de Congo parte em procissão após a missa. (Foto: Eduarda Leite)
A partir da letra narrada pelos capitães, os soldados e a sonoridade da congada atraíram olhares curiosos por onde passaram. Enquanto alvo de múltiplas câmeras de celular, o grupo seguiu tocando por uma das ruas de Trindade com sua música, e de repente estacionou em frente a uma casa sem reboco. A procissão se encerrou, mas a música e a dança, não.
A casa pertencia aos lavradores Maria Aparecida e Sebastião Barbosa. A letra, neste momento narrada por Romilton, dizia:
Ô de casa, morador desse lugar solidário
Receberá a bandeira da Nossa Senhora do Rosário
…
Olha, meu irmão, não repara não
Eu queria te abraçar e pegar na sua mão
Ao som desses versos, Sebastião sai de sua casa e cumprimenta os músicos com abraços e apertos de mão, convidando-os para entrar. O grupo segue atrás do anfitrião sem encerrar a música, e no quintal da casa simples continuam a celebração.
O ambiente é de música, dança e agradecimento pelo café da manhã oferecido pelo casal lavrador. A bandeira foi posta ao lado da mesa de café, com melancia frescas, pão francês que seria acompanhado com um molho de carne moída e legumes, queijo fresco e uma caixa de isopor com refrigerante e água. Com a homenagem, o casal se emociona diante da apresentação.
Maria Aparecida e Sebastião Barbosa, emocionados durante a homenagem. (Foto: Eduarda Leite)
Há 50 anos, a família do casal têm a tradição de oferecer café da manhã e almoço no último dia de Romaria de Trindade. O voto foi feito em nome da saúde de um garoto da família, que foi diagnosticado com câncer. O falecimento do garoto não impediu a continuidade do ato solidário.
“Eu fico emocionado com a homenagem porque é bom demais, é gostoso demais. Não tem nada que paga um trem desse. Todo ano nós damos lanche e também damos doação para a Vila São Cottolengo. Estava lá agorinha”, compartilhou Sebastião, referindo-se ao complexo filantrópico de Trindade, dedicado ao acolhimento e cuidado de pessoas com deficiências múltiplas.
As doações são realizadas com a renda do trabalho na fazenda. As melancias postas na mesa do café vieram do local de trabalho de Sebastião. “Eu sou meio da roça, bobão né? Mas não repara não. Eu gosto mesmo disso aqui, me faz bem”, disse o anfitrião da casa, convidando a repórter para tomar café da manhã também.
Romilton de Souza ao lado de seu filho, Leandro de Souza, após o café da manhã. (Foto: Eduarda Leite)
“Independente da nossa festa que é no mês de maio, a gente vem para a Romaria em prol da devoção ao Divino Pai Eterno e de todas as bênçãos que a gente recebe durante os anos”, compartilha Romilton, ao lado de seu filho.
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