Por anos, os confrontos entre torcidas organizadas em Goiás estamparam manchetes policiais, transformando festas esportivas em campos de batalha. O mais sangrento episódio recente ocorreu em junho de 2024, quando uma briga entre torcedores do Goiás Esporte Clube e do Vila Nova terminou com cinco pessoas baleadas, no Jardim Novo Mundo, em Goiânia.
Segundo a Polícia Militar (PM), os tiros partiram de dois suspeitos presos em flagrante após uma tentativa de ataque de torcedores do Goiás contra membros da organizada do Vila. As vítimas precisaram ser transferidas para o Hospital de Urgências de Goiás (Hugo), todas conscientes, mas o episódio escancarou a escalada da violência ligada ao futebol no estado.
Meses depois, em outubro de 2024, outro episódio de barbárie entre as mesmas torcidas interrompeu a tarde de um domingo antes do clássico entre os clubes. Um grupo de torcedores armados com pedras e pedaços de madeira apedrejou um ônibus do transporte coletivo no Setor Orlando de Morais.
O coletivo teve vários vidros quebrados, e, por pouco, os torcedores do Goiás, em minoria, não sofreram agressões mais graves. A fuga só foi possível porque o motorista do ônibus arrancou em alta velocidade. Apesar do susto e dos danos, ninguém se feriu com gravidade.
A tensão entre organizadas voltou a se repetir nesta semana. Na segunda-feira, 2 de junho, uma confusão generalizada entre torcedores da Anapolina e do Trindade tomou conta das imediações do Estádio Abrão Manoel da Costa, em Trindade, antes do jogo pela 3ª rodada da Divisão de Acesso do Campeonato Goiano.
A confusão começou com xingamentos, mas rapidamente evoluiu para agressões físicas em bares e calçadas próximas ao estádio. Vídeos mostram torcedores arremessando mesas e cadeiras, em um confronto caótico que precisou da intervenção da Pm. Mais de 20 envolvidos foram detidos e escoltados a pé até a delegacia da cidade.
“Torcidas Organizadas – Prevenção à Violência Dentro e Fora dos Estádios”
Diante desse cenário preocupante, o estado de Goiás decidiu inovar: nos dias 3 e 4 de junho, Goiânia sediou o 1º Seminário Nacional “Torcidas Organizadas – Prevenção à Violência Dentro e Fora dos Estádios”, evento inédito promovido pelo Batalhão Especial de Policiamento em Eventos (Bepe) da Polícia Militar de Goiás.
O seminário, realizado na sede da Associação dos Oficiais da Polícia e Bombeiro Militar do Estado de Goiás (Assof-GO), reuniu representantes de forças de segurança de 20 estados, além de especialistas, dirigentes de clubes, autoridades do Judiciário e representantes de torcidas organizadas.
O objetivo central foi promover um espaço de diálogo, troca de experiências e apresentação de estratégias para coibir a violência no futebol e garantir a segurança dos torcedores, dentro e fora dos estádios.
Durante a abertura, o governador Ronaldo Caiado enfatizou a importância do planejamento e da atuação integrada das instituições. “A prevenção passa por identificar previamente os integrantes das torcidas organizadas, monitorar deslocamentos e garantir a ordem no pós-jogo. Precisamos unir inteligência, ação e diálogo para construir uma cultura de paz nos eventos esportivos”, declarou.
Em entrevista a reportagem do O HOJE, o Coronel Batista que é comandante do Comando do Policiamento da Capital, destacou a importância do evento. “O objetivo deste seminário é justamente trocar experiências para aprimorar o policiamento em grandes eventos, especialmente no que diz respeito às torcidas organizadas. Temos uma atuação muito positiva, baseada em um termo de ajustamento de conduta recentemente atualizado pelo Ministério Público, que concede ao Batalhão de Eventos maiores poderes para fiscalizar e atuar junto às torcidas.”
Batista apontou ainda a necessidade de que os clubes colaborem mais ativamente com o poder público. “Eles têm responsabilidade sobre seus torcedores e precisam se comprometer com campanhas educativas, medidas de autocontenção e identificação dos membros de organizadas que se envolvem em crimes”, reforçou.
Entre os convidados de fora de Goiás, o major Eiras, da Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF), explicou que, na capital federal, a atuação em dias de jogo é feita pelo Batalhão de Policiamento de Choque, já que o DF não possui uma unidade especializada como o Bepe. “Nós que lidamos com os eventos em Brasília, lá não tem o Bepe. Então a gente veio aqui também para verificar essa experiência, ver como é que funciona e levar uma semente, para ver se de repente conseguimos implementar um batalhão desses lá ou se mantemos a nossa forma de trabalhar”, disse.
Perfil das torcidas e políticas públicas
Um dos destaques do seminário foi a participação do professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Nicolás Cabrera, coordenador do Observatório das Torcidas Organizadas. Ele apresentou dados de uma pesquisa inédita realizada pelo núcleo de estudos, que traça o perfil dos torcedores organizados no Brasil e mapeia os principais focos de violência.
Segundo Cabrera, os confrontos têm motivações variadas que vão desde rivalidades históricas até disputas por status entre diferentes grupos de torcedores. “É um fenômeno que precisa ser tratado com profundidade. Não adianta apenas a repressão policial. É preciso criar políticas públicas que envolvam educação, lazer, oportunidades e diálogo com esses jovens. Muitos deles são periféricos e encontram na torcida uma forma de pertencimento e identidade”, explicou.
Ministério Público propõe protocolos e punições
Com o intuito de mudar e estruturalizar e melhorar os relacionamento entres torcidas e forças de segurança, representantes das principais torcidas organizadas de Goiânia – Dragões Atleticanos, Esquadrão Vilanovense e Força Jovem Goiás – se reuniram na sede do Ministério Público de Goiás (MP-GO) e firmaram um termo de ajustamento de conduta (TAC) com compromisso firme no combate à violência, vandalismo, racismo, homofobia e outras condutas inadequadas.
O encontro foi conduzido pelo coordenador do Grupo de Atuação Especial em Grandes Eventos do Futebol (GFUT), promotor Sandro Henrique Silva Halfeld Barros, e contou com a presença do tenente-coronel Alex de Siqueira, comandante do Batalhão Especializado de Policiamento em Eventos (Bepe) da Polícia Militar, que também assinou o documento.
Esse acordo atualiza um TAC firmado em 2011, reforçando o compromisso das torcidas organizadas com a cultura da paz, a segurança nos eventos esportivos e o respeito à Lei Geral do Esporte. Entre as medidas destacadas estão ações integradas de fiscalização, padronização de procedimentos e o cadastramento dos torcedores, incluindo a coleta de dados biométricos para maior controle.
De acordo com o promotor Sandro Halfeld, o pacto oficializa práticas já adotadas, como o ressarcimento a empresas de transporte por danos causados por torcedores, a comunicação prévia sobre deslocamentos e eventos comemorativos das torcidas. Além disso, foram estabelecidas punições mais rigorosas para os associados envolvidos em atos violentos, que podem variar da suspensão à expulsão em casos de reincidência.
O Ministério Público também participou do seminário e apresentou propostas para reforçar o controle sobre as torcidas organizadas. Entre as medidas sugeridas está a elaboração de um protocolo de atuação conjunta entre as forças de segurança, os clubes e a Justiça, com regras claras para a identificação de torcedores violentos, punições administrativas e campanhas educativas.
Leia mais: Seminário discute segurança nos estádios em Goiânia