A semana de estreia de Edson Fachin na Presidência do Supremo Tribunal Federal passou como o esperado, sem balbúrdia. Pode haver encrenca nas entrevistas e outras falas de ministros fora dos documentos oficiais, os chamados autos, mas não a instituição. A cobra vai fumar charuto árabe quando alguém quiser mexer nas decisões do STF. É exatamente o que se está tentando com a anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro, ainda que não seja ampla, geral e irrestrita, além da tal Projeto de Lei da Dosimetria. Os magistrados da mais alta Corte entendem que perdoar, ou até mesmo outro reduzir as penas, seria diminuir o prestígio do topo do Judiciário no Brasil.
Estranhamento parecido estão vivendo a Câmara dos Deputados e o Senado, que servem como joguetes do mandachuva ácido da vez, o ocupante do Palácio do Planalto. São os casos de Arthur Lira (PP/AL), o ex-presidente que manda, desmanda e comanda a Câmara, e Davi Alcolumbre (UB/AP), lulista fanático à frente do Senado. No mês passado, ela (a CD) aprovou com grande votação a PEC das Prerrogativas, que a imprensa de esquerda rebatizou de PEC da Blindagem ou até da bandidagem, e ele (o Senado) a sepultou por unanimidade. As duas cuias do Legislativo (uma virada para cima, outra para baixo) vivem às turras e às vezes sobra para o prédio do outro lado da praça, a sede do Supremo Tribunal. Se a PEC da Blindagem tivesse virado texto constitucional, os parlamentares ficariam protegidos da sanha do Supremo.
Em agosto, o então presidente do STF, Luís Roberto Barroso, apresentou o plano de gastos para 2026: R$ 1 bilhão. Uma despesa bilionária precisa causar efeito. Os ministros se reúnem, condenam e vem lá do Congresso a lei anistiando? Os ministros podem entender como desperdício de tempo e dinheiro. Vai ser canetada atrás de canetada invalidando a novidade. Ressalte-se que as rusgas viajaram no tempo, porém nenhuma época se compara à de vigência da atual Constituição da República.
Promulgada em 1988, a Constituição é um cartapácio, muitas vezes maior (7 artigos a de lá, 250 a de cá) que a dos Estados Unidos e outras das principais democracias – comparadas, a do Brasil é um lutador de sumô e a dos EUA, uma bailarina clássica. Resultado: o desaguadouro-mor é o STF, o guardião da Carta Magna. Como os mais variados assuntos estão nela, tudo vai parar nele. Assim, o que o Legislativo vota precisa estar em consonância com o que os ministros consideram correto, não é a opinião deles que conta, nem o que o Brasil precisa, nem o que seus eleitores pedem. Ou faz o que os capas-pretas esperam ou declaram a inconstitucionalidade e tchau e bênção ou maldição.
O Executivo, coitado, convive com uma Constituição volumosa e inteiramente contra ele, pois foi moldada para o parlamentarismo, o chefe de Estado e de governo é um presidente, confusão generalizada e o incêndio vira cinza em dois dos lados da Praça dos 3 Poderes. Mais ou menos assim e cuidado para não ficar tonto:
O Legislativo, formado por Câmara e Senado, manda no presidente da República, que come nas mãos nem sempre limpas do Centrão, que é quem manda no Congresso Nacional. Por sua vez, Lira manda no Centrão e Alcolumbre domina o Senado. E o chefe de Estado e de governo, o presidente da República, que em tese não manda em nada pois o Executivo em nada manda, Lula manda em Alcolumbre, o dono do Senado, e o ex-presidente Jair Bolsonaro manda em Lira, que manda na Câmara. Quando esse pessoal todo aprova algo, quem manda é Lula, cuja assinatura coloca em vigor as leis e as emendas à Constituição, se refugar ao impor o jamegão, retorna para o Congresso. Mas, mesmo aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo, se o Supremo as rejeitar, volta tudo ao começo, declara a inconstitucionalidade e adeus, viola. Então, o STF manda em tudo, certo? Sim, mas a maioria do Supremo é de Lula. No fim das contas, o presidente da República, que não manda em nada, manda no Supremo, que manda em tudo. No verdadeiro fim das contas, quem realmente não manda em nada é quem paga as contas: o povo.
Constituição determina harmonia entre os Poderes, não vassalagem
Logo em seu 2º artigo, a Constituição da República determina: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Pois se existe algo que não existe entre eles é independência. Harmonia, então, nunca sequer se ouviu falar nisso. Essa divisão tripartite vem da França, de um pensador chamado Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu, que teve a ideia da tripartição. O que Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte, chamava de livrinho e é livrão, mas não livre, o que a Constituição não manda em nenhum de suas centenas de artigos é um poder ser servil ao outro. Se seus integrantes se deixam pisar como num tapete, é por vassalagem própria, o capachismo nada tem de obrigatório.
Nos municípios, eis um baita problema, só existe um poder, o Executivo. Em regra, o prefeito manda na Câmara, que recebe para isso – e a referência não é ao duodécimo, a quantia de verba que todo mês entra. Em caso de briga, os vereadores o derrubam – as rusgas, claro, são sempre por dinheiro, secretarias ou a presidência do Legislativo. Nos Estados e no Distrito Federal, ampliam-se as asas do governador, que costuma acumular os três poderes – ou pelo menos tenta.
Vêm dos Estados Unidos os sonhos de harmonia e independência. Não seriam poderes harmônicos como acobertadores das mazelas uns dos outros, mas como fiscalizadores entre si. Só não conhecendo o Brasil real para escrever uma ficção dessas. Dilma Rousseff e Fernando Collor foram derrubados da Presidência da República pelo Poder Legislativo, representado pelo Congresso Nacional, por sua vez representado pelo Senado, por sua vez presidido pelo presidente do STF. Viu como parece que essas linhas foram escritas por Dilma?
A realidade é outra. A harmonia depende das emendas e dos cargos, no caso de que trata esta página. O Supremo é composto, em sua maioria, por indicados nos mandatos do PT. A Câmara e o Senado têm bancadas voláteis, que mudam de opinião mais do que trocam de terno e de partido. Quem abaixa a guarda é nocauteado. Nos últimos tempos, mais precisamente desde a volta das eleições diretas para presidente da República, quem beija a lona é o chefe do Executivo, aí volta a roda-viva: ele sevicia os parlamentares, que compram apoio de prefeitos, que compram votos para si e para seus padrinhos deputados e senadores. E o Judiciário? Valida ou não.
Parte da população acredita que os Ministérios Públicos sejam componentes do Judiciário, que pertencem ao Executivo. Pertencem é quase sempre o verbo adequado. Parece loucura, mas o governador escolhe o procurador-geral de Justiça, que é o chefe do MP estadual. O presidente pinça entre os integrantes do Ministério Público Federal o procurador-geral da República. Peraê, mas não é o PGR que oferece denúncia contra o presidente e o PGJ que ferra o governador? Sim, porém, não ou depende. Óbvio, dentro do que manda a Constituição, um órgão do Executivo (a PGR), chefiado por alguém (o PGR) pinçado pelo presidente, engaveta casos de quem o nomeou e oferece denúncia contra inimigos de quem o nomeou. Democracia é isso.