A cadeia produtiva do leite, historicamente marcada por oscilações de preços, alta sensibilidade climática e vulnerabilidade à concorrência internacional, vive um momento de transição. No centro dessa mudança está o mercado de leite em pó, que tem se revelado não apenas um dos termômetros do setor, mas também um campo fértil para estratégias de diferenciação, investimentos industriais e novas formas de gestão de risco.
No estado de Goiás, referência nacional na produção agropecuária, o boletim de abril da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) indica que o leite em pó integral foi o item com maior valorização entre os derivados lácteos, com alta de 2,51% no mês. A tendência não é isolada. Desde janeiro, o produto acumula variação positiva e ocupa posição de destaque na cesta de lácteos monitorada pela Câmara Técnica e de Conciliação da Cadeia Láctea de Goiás.
Produtos com valor agregado ganham espaço no mercado
Esse crescimento se insere em um cenário mais amplo de reestruturação do setor, em que a agregação de valor e a segmentação do público consumidor passam a ocupar lugar estratégico. Um dos elementos que evidenciam essa mudança é o avanço da produção de leite em pó de tipos especiais, como o leite de búfala com proteína A2A2, voltado a consumidores com maior sensibilidade à beta-caseína A1, presente no leite de vaca convencional.
Ainda que esse nicho represente uma fatia pequena do mercado, há uma aposta crescente na valorização desses produtos, cujos preços no varejo podem ultrapassar R$ 90 por quilo, especialmente nas versões liofilizadas, cuja tecnologia de secagem preserva melhor as propriedades nutricionais do leite.
Essa especialização atende a uma demanda crescente por alimentos com perfil funcional, tendência reforçada pelos dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), segundo os quais 15% da produção global de lácteos provém de leite de búfala — segmento amplamente desenvolvido na Índia, mas ainda incipiente no Brasil.
Estabilidade recente contrasta com volatilidade anterior
Além do potencial de valor agregado, o leite em pó também desempenha papel estratégico no equilíbrio entre oferta e demanda de leite fluido. Por ser um produto de maior durabilidade, ele permite que a indústria processe excedentes em períodos de maior produção e reduza perdas, contribuindo para a estabilidade da cadeia.
Esse papel ganha destaque em um momento de maior volatilidade no mercado interno, impulsionada por importações, variações cambiais e oscilações no consumo. Em setembro do ano passado, por exemplo, a cesta de derivados lácteos goiana registrou aumento de 3,84%, puxada principalmente pelo leite em pó e pela muçarela. Já em abril deste ano, os preços médios permaneceram estáveis, apesar de altas pontuais.
A estabilidade recente reflete, segundo a Câmara Técnica, um equilíbrio entre produção, indústria e consumo. Mas o setor ainda enfrenta desafios significativos. A forte concorrência de importações, especialmente de leite em pó de países do Mercosul, tem levado produtores e entidades setoriais a demandarem medidas de proteção comercial.
Produtores pedem defesa comercial e mercado futuro de leite em pó
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) encaminhou pedido de investigação de dumping contra o leite em pó importado e tem defendido a criação de salvaguardas temporárias para conter prejuízos aos produtores nacionais.
Além disso, cresce a atenção sobre o desenvolvimento do mercado futuro do leite, ainda em estágio inicial no Brasil. A proposta, apoiada pela CNA e discutida com especialistas do setor, visa oferecer instrumentos de hedge que permitam ao produtor rural travar preços e garantir maior previsibilidade em sua receita. Essa ferramenta, comum em outras cadeias como soja e milho, poderia contribuir significativamente para a profissionalização da atividade leiteira, frequentemente marcada por margens estreitas e riscos elevados.
Mercado lácteo cresce no estado. Foto: Divulgação
Inovação e rastreabilidade devem impulsionar setor
A aposta em inovação também passa pela rastreabilidade. Um grupo de trabalho do Ministério da Agricultura, com participação da CNA e da Embrapa Gado de Leite, propõe a implantação gradual de um sistema de identificação individual de bovinos em todo o território nacional. A ideia é adotar um modelo em fases, com horizonte de oito anos para cobertura integral. A iniciativa pode trazer ganhos não apenas em sanidade e segurança alimentar, mas também na valorização de produtos premium, como o leite tipo A2 ou orgânico, cuja origem rastreável é um diferencial competitivo.
Nesse cenário, Goiás se consolida como um laboratório natural para essas transformações. Com estrutura de monitoramento mensal de preços, forte presença da agroindústria e atuação articulada entre governo, setor produtivo e academia, o estado reúne as condições para impulsionar negócios que combinem tradição agropecuária e inovação tecnológica.